Sunday, December 4, 2016

Manifesto sobre o estado físico da matéria


A Etimologia poderá ser considerada o mais fascinante dos campos que constituem a gramática. A profundidade e a abrangência de um estudo que une a história humana e a evolução dos seus vocábulos são praticamente infinitas face à nossa fugaz escala de tempo. Através dela, podemos ir em busca do significado que nos escapa de palavras tão triviais quanto misteriosas. Podemos, inclusive, vasculhar os nossos próprios nomes. A constatação de termos à disposição um significado primordial e totalmente inesperado para cada uma das milhares de palavras que compõem o nosso léxico talvez nos indique coerência e certa segurança no percurso das diversas gerações de ancestrais que, de bastão em bastão, nos entregaram o rumo da história.

Uma noção que podemos discernir da Etimologia, portanto, é a de elementos concretos na formação do conhecimento humano. Concreto é uma palavra que em nosso entendimento intuitivo sugere solidez, cuja aplicabilidade, por sua vez, varia mas quase sempre representa a mais básica compreensão de um estado físico. Nas generalistas aulas de ciências do ensino primário e secundário aprendemos que além do sólido, a matéria pode apresentar os estados líquido e gasoso. Mas estejam tranquilos, porque a física não tem nenhuma importância neste manifesto senão a aplicação metafórica de alguns dos seus termos. Isto é um esboço inerente à Sociologia; apesar de todo o desdém que tem sofrido ao longo dos últimos anos, ela ainda é muito mais inquietante que qualquer equação.

Façamos um pequeno recuo no tempo pelas mais elementares páginas da história. Se tivermos de utilizar terminologia física para caracterizar a vida dos nossos pais e avós, de que palavra nos serviríamos? Aliás, dentro de todo o nosso léxico, que palavra melhor se adequaria? Ocorre-me apenas uma: o mundo dos nossos pais, por assim dizer, foi um mundo sólido, assente em convenções sociais rígidas e relações afetivas praticamente imutáveis. Perspectivas de pertença, família, emprego, lazer, aptidão e sociabilidade eram perfeitamente identificáveis e mantidas preservadas por toda a vida. Era comum os filhos seguirem os passos dos pais. Era comum famílias conjurarem uniões matrimoniais. Eram comuns os laços de vizinhança. Tradição, provincianismo e conservadorismo foram conceitos edificados por essa vida arraigada à noção de estabilidade e invariabilidade, incluindo a rigidez da constituição classista da sociedade, pouco permeável à inter-transitação. Foi um mundo que garantiu certezas, mas às custas da castração das aspirações individuais. Um mundo ultrapassado e indesejável. Um mundo em estado sólido.

Nas últimas décadas, no entanto, outro mundo se formou da dinâmica relacional humana. Um mundo no qual nem todos das presentes gerações cresceram, mas que inevitavelmente nos tem obrigado a uma dramática adaptação. Este mundo configura a mais abrupta ruptura com a solidez do passado, assumindo em toda sua instabilidade e transformabilidade um novo estado físico: a liquidez. Zygmunt Bauman, o célebre e quase centenário sociológico polonês, deu a este mundo uma acuradíssima designação: modernidade líquida. Longe de pretensiosismos em relação ao seu profundo conhecimento, permito-me sugerir um outro termo, nem melhor, nem alternativo ao de Bauman, apenas adicional e talvez complementar: imediatismo mágico. A vida se nos escapa por entre os dedos e se metamorfa a cada segundo conforme novas camadas que se vão acumulando umas sobre as outras tão apressadamente que impossibilitam o funcionamento do nosso organismo dentro dos seus padrões rítmicos. É um mundo que se transforma sem prestar contas ou oferecer entendimento, como aquele almoço que devoramos rapidamente em virtude de alguma pressa rotineira e que nos empanturra sem no entanto o digerirmos. O mundo atual é um espevitado, porém metódico exercício de indigestão. Não por ser a desgraça que é do ponto de vista humanístico, mas por girar muito além do ritmo biológico do nosso sistema digestivo mental. Não há cérebro que acompanhe a velocidade das informações, vivências e relações que a modernidade líquida (ou imediatismo mágico) oferece. Quem nunca teve um momento de sensibilidade, como se o tempo desacelerasse só para si, para perceber a expressão de indigestão no rosto das carcaças de uma repartição pública ou de um vagão de metro? Quem nunca sentiu a multidão à sua volta deambulando caoticamente, aparentemente sem destino e demasiado acelerada? Quem nunca teve espasmos de mora? Numa sociedade que produz cotidianos insatisfatórios em vidas homogeneizadas, talvez apenas os mais embrutecidos não questionem, nem uma única vez, o sentido diluído da sua existência.

Vivemos no mundo acelerado de uma engrenagem desumanizadora. Uma engrenagem que deixou de ser o mecanismo de funcionamento de certas aspirações para ser a própria aspiração. Este mundo que em sua concepção materialista está assente sobre três pilares fundamentais: o trabalho, o consumo e a produtividade. E que apresenta consequências transbordantes que alagam, com toda sua implacável liquidez, nossa noção de sociabilidade e afetividade. Estamos condenados a nunca saber quem de fato somos porque não temos tempo de introspecção. Foi declarada guerra ao ócio criativo e é dele que mais necessitamos como antídoto do obscurantismo moderno. Quem nunca confortou um amigo confuso e perdido pedindo-lhe que não se preocupasse porque, afinal, estamos todos confusos e perdidos? Mas a questão é: temos mesmo de estar confusos e perdidos? Os jovens são induzidos a acreditar que o mundo é demasiado caótico e instável para merecer apreciações filosóficas, sendo amplamente preferível a objetividade robótica do funcionalismo na engrenagem. Mas devemos perguntar: por que o mundo tem de ser caótico e instável?

Nossas vidas são uma via expressa por onde passam vertiginosamente, sem ponderações de velocidade, todos os elementos básicos que a constituem. As proporções dramáticas dessa viagem, verdadeira lombra social, têm provocado distorções sobretudo nas relações de afeto através das quais expressamos nosso instinto sociável. As amizades se têm tornado cada vez mais frágeis e desenvolvidas segundo cálculos de conveniência que subvertem os princípios de decência. Os amores estão odiosos e amaldiçoados, configurando fórmulas latejantes de rancores e desavenças, para não dizer de ódio. Os sentimentos mais sublimes, como compaixão, solidariedade e tolerância apresentam-se descartáveis, meros adereços protocolares de ocasião. Nosso chão, no qual se fundamenta a percepção de equilíbrio e estabilidade, é diariamente abalado por tremores simultâneos de epicentros diversos. Tudo se desfaz em ápices, se escoa em córregos, se dilui em complexidades, se derrete em desconsiderações. Nossa humanidade escorre para o esgoto do embrutecimento e da insensibilidade para se perder nas profundezas da nossa essência reprimida pela dinâmica da engrenagem triturante, liquidificante.

A informação desinforma, a comunicação descomunica, a conexão desconecta e a virtualização desumaniza. Nunca estivemos tão aptos materialmente para estar juntos uns dos outros e no entanto estamos cada vez mais alienados, confinados em jaulas verticais de aglomerados urbanos desalmados, engavetados como formulários burocráticos em cubículos orwellianos. Decerto nem tudo é negativo no mundo líquido; a ruptura com modelos rígidos e pré-estabelecidos de construção da vida foi um enorme passo no sentido da emancipação humana e catapultou pautas libertadoras que ofereceram um rumo redentor a grupos sociais historicamente estigmatizados. A mordaça da autoridade se desvaneceu consideravelmente com o fim de concepções de mundo proto-mitológicas que beiravam o conformismo fatalista. Mas o rumo equivocado nos trouxe a esta amálgama de incertezas monstruosamente tirânicas. É contra suas consequências que devemos dar uma nova forma à matéria.

Naturalmente, da trindade física resta-nos o estado gasoso. Porém, enquanto os estados sólido e líquido representam comportamentos e uma dinâmica social, o estado gasoso seria um caminho filosófico percorrido por meio do ócio criativo. Do ponto de vista científico, o estado gasoso representa uma desagregação de moléculas ainda maior que a observada no estado líquido. Como não é isso que se pretende, a sua aplicação se limita à metaforização do exercício racional. Intuitivamente, associamos a filosofia a uma matéria flutuante, como se correspondesse ilustrativamente à magia de materializar a percepção da realidade a partir do espírito. Como bem destacou Carl Sagan, a palavra espírito significa respirar em sua origem latina, e como o que respiramos, o ar, é também matéria, por mais minúscula que seja, não se alude aqui a qualquer plano metafísico. Espiritualidade seria a introspecção filosófica, a consciência da própria essência. Dela, podemos impulsionar o motor do ócio criativo que percorrerá a agreste estrada da vida para revitalizá-la. Por fim, deseja-se que possamos reassumir a capacidade da variação de estado físico naturalmente, conforme nosso próprio ritmo biológico e nossas aspirações individuais. Precisamos resgatar a problemática da existência como uma afirmação da plenitude da vida.

A liquidez pode ser um estado versátil e de fácil adaptabilidade, mas percebemos que ele se arrasta pelos canteiros, pelas depressões, que é erosivo e agrava fissuras, além de ser fundamentalmente corrosivo e rasteiro. Sejamos, pois, matéria de espírito, condutores de virtude. Se na física o estado da matéria obedece à temperatura e à pressão, na sociedade as convenções sociais o enquadram e a engrenagem da desumanização baseada em valores corruptos o modela.

Não podemos subverter definitivamente as leis da física, mas devemos subverter a engrenagem social. Subverter pode ser pouco; sabotá-la e destruí-la antes que ela nos dizime talvez seja o mais sensato.

Imagine-se um físico, prestes a revolucionar o mundo.

Tenhamos a humildade que nos é oferecida pela consciência de que a nossa vida não dura mais do que os ridículos 0,16 segundos da escala cósmica de tempo - uma mosca vive, precisamente, 2.419.200 vezes mais na escala humana -, mas não deixemos de ambicionar a plenitude dessa fugaz dádiva que a mãe natureza nos ofereceu. Dignifiquemos a sua preciosidade. Não sejamos moribundos funcionários de funções funcionais. Não releguemos nossas vivências e nossos afetos ao capricho da vaidade. Não sucumbamos perante os vícios que a engrenagem reforça, como egoísmo, vaidade, falsidade, insensibilidade, indiferença e crueldade. Todos eles não passam de sinais de fraqueza. Façamos, sim, experimentos sociológicos, mas não usemos pessoas como cobaias das nossas conjurações. Revitalizemos o humanismo comprometido apenas com a virtude de senti-lo verdadeiramente.

Sejamos um pouco de Winston Smith e de gorila Ismael.

Sintamos definitivamente a juventude latejando dentro de nós e implorando para ser usada, por mais velhos que possamos ser.

Tenhamos suficiente profundidade mental para evitar que o imediatismo mágico destrua nossa humanidade.



Clique aqui para ler o Manifesto Sobre O Estado Físico Da Matéria II.

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