Wednesday, December 28, 2016

Manifesto sobre o estado físico da matéria II - A santíssima trindade


Um dos muitos motivos da minha inadaptabilidade a esta sociedade é o fato de eu não conseguir lidar com dinheiro e competição. Sou, sem exageros, um zero à esquerda cheio de casas decimais zeradas depois da vírgula. A minha incompetência nesta lide seria de uma singularidade assombrosa mesmo em ambientes de relações sociais desmonetarizadas, porque os meus mecanismos de competição - se é que os possuo integralmente operacionais - sofrem de uma crise moral crônica que emerge cada vez que participo de algum tipo de negociação. 

Por outras palavras, eu simplesmente não sei ganhar dinheiro. E quem não sabe ganhar dinheiro nesta sociedade que venera a santíssima trindade formada pelo Trabalho, pela Produtividade e pelo Consumismo é um idiota inútil, relegado à sarjeta e ao ostracismo enquanto os idiotas úteis, como economistas, gestores, investidores e advogados, além de uma casta dita menos nobre de profissionais liberais patéticos mas não menos idiotas úteis, desfilam pelas trincheiras reluzentes da vanguarda do progresso

Num mundo organizado para ludibriar os que aceitam o sacrifício laboral como grande virtude da humanidade sujeitando-se passivamente à sua engrenagem em busca das pequenas ilusões compensatórias, a maior maldição é não ser um idiota útil. Há um discernimento adquirido pela observação e questionamento dos valores vigentes que reforça a maldição, embora eu esteja quase convencido de que no meu caso ela seja substancialmente inata. Minha incompetência para competir impiedosamente e organizar a vida em torno de objetivos materialistas não filosóficos remonta aos primórdios da minha existência.

A questão não é apenas aceitar submeter-me a ocupações insatisfatórias sob as ordens de um idiota útil (em comunidades saudáveis, esclarecidas e solidárias, essa chantagem seria considerada a pior das afrontas e não uma convenção negocial perfeitamente banalizada). Trocar tempo e esforço - físico ou intelectual - por dinheiro não me faz todo esse sentido que os senhores da nossa cultura vendem como filosofia moderna e até como ciência, mas o próprio impulso fulcral de toda essa engrenagem, que pode ser traduzido como o seu prejuízo é o meu benefício e a sua desgraça é a minha redenção, logo farei tudo para que você seja prejudicado e desgraçado, é para mim abjeto e insuportável. Como vivo dentro da sociedade, é impossível não fazer dele uso ocasional, às vezes involuntariamente, outras para prevalecer num cenário adverso, num momento de fraqueza. Mas como estilo de vida, como postura prática arraigada a preceitos ideológicos, é tudo aquilo que deve ser combatido com afinco.

Nunca consegui estar acostumado à concertação das relações laborais, embora esteja sujeito a ela como todos os outros cidadãos economicamente dependentes (leia-se não milionários). Noutro dia, numa conversa descontraída com uma amiga enquanto tomávamos o último banho de sol do ano antes do inverno desabar sobre nós, informei-lhe de que a gerente de um estabelecimento em que costumo laborar em turnos madrugadeiros me pedira para fazer a noite do Reveillón e que eu lhe havia respondido positivamente (dos tradicionais festejos de fim de ano, a única coisa que eu quero é que Janeiro não se atrase mais do que o costume). A minha amiga compreendeu a decisão de imediato, dizendo que por uma boa quantia valeria a pena. Mas a conversa via sms com a gerente não contemplara em momento algum valores e sequer passara-me pela cabeça falar disso. Ela me aconselhou a cobrar o que costuma ser o valor normal de uma jornada na noite de Reveillón, que corresponderá a uma multiplicação do montante que recebo por jornada.

Não sei como ela, uma pessoa relativamente tímida, faria para abordar a questão. Eu, uma pessoa relativamente não tímida (ou um relativamente bom ator), não tenho a mínima ideia. O desconforto que me aflige só de pensar nisso é manifesto. A ideia de trabalhar apenas por dinheiro é desoladora. Tenho formação acadêmica em ciências geográficas, pelo que se quisesse empanturrar-me de dinheiro, já que eu até tinha algum jeito, bastaria deixar-me seduzir pelo mercado de trabalho onde a minha área de formação tem peso (mas a minha sensibilidade não está para o mercado da mesma forma que a sua neura não está para os meus caprichos humanistas anti-mercantilistas). Exigir dinheiro nunca foi índole minha. Mas ser idiota útil também não. E trabalhar passivamente sem exigir direitos é coisa de idiotas ainda mais úteis do que quem trabalha exigindo-os ativamente.

O mais habitual em situações dessas é ser prudente sem se deixar ludibriar, estando, para todos os efeitos, idiota útil sem no entanto deixar de ser idiota inútil (uma das maravilhas da língua portuguesa é ter um verbo para uma condição temporal e outro para uma condição permanente). Na verdade, eu aceitaria estar idiota útil por muito tempo naquele estabelecimento, porque apraz-me o seu ambiente multicultural e nele tenho a oportunidade de evitar o fastio lendo, escrevendo e editando fotografias. Todos temos de exigir nossos direitos e eles contemplam um salário digno e condizente, mas são as convenções responsáveis pela hierarquização do trabalho com base na propriedade que devem ser confrontadas se queremos cortar o mal pela raiz e não apenas aparar galhos, ampliando, assim, o nosso sacrifício como mártires da engrenagem. Onde quero chegar, meus caros idiotas úteis ou inúteis, é que a noção capitalista de trabalho é um esterco intragável exatamente como as outras duas divindades da santíssima trindade.

Aliás, esterco nada; merda mesmo, sem falsa diplomacia. Uma merda fedorenta. Por meio dessa santíssima trindade a sociedade disseminou doenças psicológicas degenerativas de mentes e incapacitantes de corpos. Sobre ela estão estruturadas indústrias perniciosas como a farmacêutica e como as terapias, especialmente as místicas. Nela se alimenta a indústria do entretenimento e suas drogas psicotrópicas alienantes, como futebol, programas de auditório e novelas. Aliás, como todo o conteúdo das diversas emissoras de televisão. E isto para não desnortear o texto do tema, porque as indústrias do armamento, do petróleo e das novas tecnologias acenam mandando lembranças.

Tenho considerado o pior tipo de pessoa aquela que, numa situação de discussão, discórdia ou antagonismo (seja ideológico, seja de qualquer outra ordem), utiliza-se de um pomposo vá trabalhar como cartada final argumentativa recheada de pretensa superioridade moral. Se eu fosse uma pessoa fria ou se tivesse desistido totalmente da redenção humana, teria sempre na ponta da língua um vá trabalhar você, idiota útil, se acha que o trabalho liberta ou dignifica. Escravize-se ainda mais do que já é escravizado, ultrapasse largamente - de bom grado e sorridente - o limite da jornada diária. Embruteça-se numa vida enfadonha, desperdiçada numa função sem sentido para que o patrão (ou o patrão do patrão, ou o patrão do patrão do patrão) possa desfrutar de uma vida que você nunca terá. Para compensar, afunde-se nas drogas pesadas do entretenimento lobotômico até morrer no esquecimento após jamais ter de fato vivido.

Como não sou frio e nem desisti totalmente da redenção humana, continuo sendo apenas rabugento, alternando picos de impaciência catártica com ondulações de assinalável fleuma. E digo tudo aquilo de forma, digamos, mais subliminar.

Se não há como eu combater definitivamente a santíssima trindade, também ela não me conseguirá seduzir. Contra a sua sedução traiçoeira interponho a virtude da arte. Mas quando digo que abomino o trabalho, refiro-me à sua concepção como elemento da santíssima trindade da religião capitalista. A palavra encerra valores tão abomináveis que me nego a utilizá-la para designar atividades positivas e destacadamente sublimes. A minha arte, que é uma criação e não uma produção (eis outra palavra abominável dentro do contexto dessa religião), teria tudo para ser considerada trabalho. Mas não o é por dois motivos: 1) eu não quero que seja, 2) eu não tenho conseguido adquirir nada próximo à independência econômica por meio dela. E tudo o que não seja trocado por uma quantia de dinheiro que permita a existência insossa num patamar intermediário entre a indigência e a riqueza não é considerado trabalho, mas lazer, hobby ou qualquer outra palavrinha mais açucarada. Trabalho, trabalho mesmo, só para os assalariados, para que continuem sendo nem mais nem menos que peças da engrenagem. Os ricos que trabalham como pobres são ainda mais idiotas úteis ou sofrem de um nível de alienação ainda mais tétrico. Mas um rico que não trabalha e vive tranquilamente uma fábula colorida às custas de assalariados é um sociopata.

Então, qual é a solução? Ou ficar rico honestamente sem usufruir do prejuízo e da desgraça (e do suor) de ninguém, o que é praticamente impossível, ou fugir da sociedade. A segunda opção não é só possível como recomendável para quem quer livrar-se de vícios e doenças psicológicas e tentar alcançar a plenitude da existência. A primeira talvez possa ser alcançada por meio de formas menos execráveis ou que ao menos não tenham uma afetação negativa direta sobre outras pessoas. Ganhar na loteria talvez seja um exemplo disso, embora as lotéricas sejam geridas pelo que há de pior e mais ganancioso na religião capitalista (a proprietária do jogo da sorte em Portugal é a Santa Casa de Misericórdia, uma total não surpresa). Eu penso sempre em alguma das minhas criações. Adquirir independência econômica pela arte seria radiante. Mas e a ardilosamente vampiresca indústria artística? E as editoras mafiosas e seus chorudos esquemas de controle de direitos autorais?

Não adianta. Quem está na chuva se molha invariavelmente. Quem vive dentro da sociedade não conseguirá ascender sem utilizar o seu semelhante como degrau. Mas não ser trapaceiro ou oportunista, não conjurar contra o próximo, não dificultar relações nem infestar ambientes e não utilizar-se daquele jeitinho de sorrateiramente retirar benefícios do prejuízo alheio já será um esboço mais dignificante. Ou pelo menos será uma forma - ainda que aparentemente estéril e inconsequente - de desafiar o embrutecimento. Sobretudo será uma forma de não servir arregimentadamente à ideologia da engrenagem. Porque ela ordena que sejamos impiedosos na escalada em busca dos seus próprios anseios, induzidos como nossos, mas cada vez que contrariamos o padrão de comportamento nos transformamos em pequenas ferramentas sabotadoras. Bem encravadas na engrenagem podem até gerar consideráveis anomalias.

Um artista genuíno nunca será um trabalhador e sua arte nunca será trabalho. Mas deixem-me falar apenas por mim que é menos problemático. Eu não escrevo ou fotografo conforme expectativas de mercado. A música da banda que eu gostaria de ter não atenderia aos anseios da indústria fonográfica. Minha criação artística é por essência marginal e subversiva, e representa no seu âmago tudo o que a santíssima trindade despreza. A reciprocidade, notem, existe e é orgulhosamente salientada. 

Costumo ficar entre dez e catorze horas por dias - às vezes mais - concentrado na criação e aperfeiçoamento da minha arte. Faço-o voluntariamente por puro prazer, sem qualquer tipo de obrigação e sem sentir-me contrariado. Para burocratas e tecnocratas da engrenagem, sou um vagabundo. Talvez o que eles não consigam suportar seja o fato de eu desenvolver uma atividade satisfatoriamente, sem ter a individualidade e a personalidade desintegradas e sem ser lobotomizado, embrutecido, robotizado e transformado em uma peça sua desprovida de humanidade. Talvez por eu ser um coração que bate e sente e não um par de ouvidos que obedece ordens e de coniventes olhos que convenientemente não enxergam.

Eu sou um artista genuíno! Consequentemente - salvo as raríssimas exceções que confirmam a regra, embora eu não me recorde de nenhuma -, não sou economicamente independente. Faço arte por amor, prazer, entusiasmo, deleite e satisfação. Faço arte pela arte. Para desafiar apaixonadamente a inefabilidade da vida. Há mais de dez anos escrevi um poema apologista da pirataria que infelizmente seria engolido para sempre por um antigo computador antes do seu derradeiro pígarro. Mas alguns versos a minha memória logrou resgatar:

Fazer pirataria
É fazer arte
Arte contra o lucro
Arte pela arte
Subvertendo um produto morto
E devolvendo-lhe a vida
Voltando a ser arte
Nem embalada
Nem consumida

Sou um artista que cria, mas, por não ser um assalariado que produz, chamam-me vagabundo. Como ser vagabundo parece-me melhor do que ser idiota útil, aceito a ofensa como elogio. Sou um vagabundo criativo e vivo. Não sou uma carcaça moribunda como a de muitos não vagabundos. Antes de motivar qualquer arroubo de orgulho, essa é uma condição seminal, obrigatória no meu compromisso com a vida.

Por fim, uma palavra aos artistas e intelectuais religiosamente atrelados à santíssima trindade:

A arte é uma expressão sublime da capacidade perceptiva humana. Sua utilidade para fins embrutecedores e para a manutenção da engrenagem é uma contradição grotesca e um atentado à sua dignidade. 

A intelectualidade é um mecanismo pelo qual podemos discernir o mundo. Sua utilidade para perpetuar a encenação da desumanização é uma traição à sua própria função e uma das maiores indecências de que a nossa espécie é capaz.

Saudações a todos os artistas e intelectuais comprometidos com a heresia de rebelar-se contra a santíssima trindade e a todos os idiotas inúteis que, à sua maneira, resistem e criam anomalias.



Clique aqui para ler o Manifesto Sobre O Estado Físico Da Matéria I.

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